quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Crónica publicada hoje, dia 12 de janeiro de 2017, no Jornal Barlavento

Da minha janela vê-se o Algarve


A um amigo

Deixa-me dizer-te que me é muito difícil dizer-te morto quando estás tão vivo em mim. Já sabia que assim seria, mas confirmo agora que as pessoas que amamos continuam a viver em nós, são parte de nós, e tu fazes sem dúvida parte de mim. Continuas a caminhar ao meu lado, alto e magro, o cabelo despenteado, o andar desconjuntado, o riso solto e os olhos e os ouvidos muito abertos.

Não era tão próximo de ti quanto outros, não fizemos muitas coisas juntos, mas poderia alguém que te conhecesse não se sentir próximo de ti? Eras um ser humano completo, contraditório e complexo, e é assim que vives em mim. Os paradoxos e os sonhos nunca foram estranhos para nós.

Quando soube como tinhas morrido, senti ao mesmo tempo a intensa dor da tua morte e o obnóxio alívio de que a decisão tivesse sido tua. Outros amigos se me morreram como tu, não foste o primeiro, e todos estão ainda vivos em mim. Não quero explicar nem justificar a tua morte, tudo isso seria literatura e tu és real e é assim que eu quero que continues. Sei que esta frase espúria te faria rir e apetece-me ouvir a tua gargalhada.

Escrever é a minha forma de estar em silêncio, a minha forma de alcançar alguma serenidade que agora não estou já a conseguir manter. Deixa-me assim, querido amigo, que não fale muito muito mais e deixe o mais importante por dizer, que o mais importante é sempre o que não conseguimos dizer.

Quanto maior é a intensidade com que vivemos maior é o controlo que necessitamos e menor é o controlo que temos. Desculpa-me, meu querido, se não te escrevo um obituário; só o faria se acreditasse que no final tu ressuscitarias.

Escrevo-te. Telefono-te. Nunca respondes. Sei que estás morto, mas a morte não é desculpa.

Era vez um homem que já não amava aquela sua forma de existência. Ele queria ser flor, ele queria ser árvore, pássaro, até pedra ele queria ser; tudo menos ser homem, que para ser homem nunca basta ser homem, é sempre preciso ser mais alguma coisa, nunca basta afinal e tão só ser. Era assim que ele era e talvez por isso tenha deixado de ser.


Até à próxima, querido Rui!



Fotografia de Bruno Filipe Pires

Cruzeiro Seixas

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