GENTE SÉRIA NÃO ESCREVE POEMAS

GENTE SÉRIA NÃO ESCREVE POEMAS
Luís Ene





LIVRO I – IDIOTIA


Em silêncio


para dizer
que o céu é azul
que os corpos se movem no espaço
que doce é a tua boca
e amargo o teu desprezo

para dizer tudo isto
bastam-me os sentidos

as palavras
não dizem o mundo

dizem o desejo
de dizer o mundo



Aula de poesia


Era um comum fim de tarde
(ainda não era noite
e já não era dia)
quando
(de repente)
me surpreendi:


o empregado negro
(chama-se Marcos)
completamente
vestido de negro
(ainda que o polo fosse riscado
de cinzento muito escuro)
passou à minha frente
levando uma bandeja
com três imperiais
iluminadas.

E então
(ou será agora)
sou surpreendido
por esta pergunta:
Então isto é que é
a poesia?


Efeitos secundários


Podemos viajar para todo o lado
em negócios ou por prazer
sem destino
sem mapas
sem leituras prévias
sem conhecer a língua
assim como
podemos escrever
um poema
sem nunca ter lido
poesia mas
existe sempre o perigo
real e eminente
de nunca sairmos
de nós próprios
de nos perdermos
de nós mesmos


Blue Collar


Aquele que vai partir um dia partirá: tu
do o que existe um dia irá desaparecer:
não importa o que sentes: é a ordem na
tural das coisas que assim o determina:
mas tu sabes: não são só os corpos que
se amam: os corações batem sempre em
descompasso: as almas fundem-se sem
apelo no azul: não desesperes: não tens
de aceitar o real: faz da tua dor a tua li
berdade: tu és o lado de dentro e o lado
de fora: o poema [tal como a vida] esc
reve-se ao mesmo tempo que é escrito:


Retrato em tons de azul


Quando acordou o mundo ainda estava ali:
um velho filme mudo que todos os dias se
esforçava por legendar: doia-lhe um pouco
a cabeça e os olhos ardiam-lhe ligeiramente:
deixou que John Mclaughlin lhe emprestasse
um sentido e sentou-se a escrever: uma frase
duas frases três frases: escrevia e rasurava: es
crevia de novo e de novo rasurava: sorria mas
os olhos estavam tristes: entre as palavras e o
mundo existe uma irremediável dessincronia.


Lugares


ele não pertencia àquele lugar
ele não pertencia de todo àquele lugar
era óbvio evidente esmagador
mas
no entanto
ele permanecia naquele lugar
ele ia permanecendo naquele lugar

é verdade antiga:
o paraíso e o inferno
são apenas lugares:

lugares ao nosso alcance


[sentido]



escuta estas palavras
sem procurares um sentido:
som e sentido são a mesma coisa.

escuta estas palavras
ao som da tua própria voz:
só assim elas farão sentido.


todos os poemas


todos os poemas têm uma porta das traseiras
por onde sempre nos escapamos

todos os poemas têm um lado de fora
tão branco como o branco da folha

todos os poemas são amblíopes
que nos conduzem pela mão

todos os poemas são um só poema
que continuamente se dilata

todos os poemas são repetição e instinto
cada vez mais eu escrevo menos


Asas


não há nada mais além
as pessoas são apenas corpos
pensam planeiam apaixonam-se
mentem sangram morrem
e interrogam-se porquê


Gente séria


Gente séria acredita
Tudo tem uma solução
Tudo pode ser compreendido
Tudo pode ser explicado

Gente séria acredita
Não há nada que não possa ser dito

Gente séria não escreve poemas


O estado da literatura


enfio a cabeça
num buraco
e esqueço
enfio a cabeça
num buraco
e partilho
enfio a cabeça
num buraco
e pertenço
o estado da literatura
é sempre de crise


UM HOMEM ESCREVE


Um homem escreve.
Está fechado no seu gabinete. Na verdade está encerrado na sua sala, porque as palavras quase nunca nos dizem o que dizem. A sala é pequena, pouco mais de quatro por três metros, com uma porta e uma janela, em cada um dos dois lados mais pequenos do rectângulo. Está ali das nove às dezoito horas, todos os dias, com excepção dos fins-de-semana e dos feriados, com uma hora para o almoço. Cumpre sempre o horário com uma rigidez cadavérica, tão cadavérica quanto o seu rosto cansado.
Um homem escreve.
Está em frente a um mar de Inverno e ri. Não está ninguém na praia a não ser ele. Senta-se na areia e perde-se na contemplação do mar. Umas vezes tão revolto e outras tão calmo e no entanto sempre o mesmo mar. Da mochila tira uma garrafa de vinho tinto meio cheia, bebe um gole longo e deita a rolha fora. O seu cabelo está revolto como o mar, mas os seus olhos estão cheios de luz. Hoje está ali, amanhã estará onde lhe apetecer ou onde tiver que estar, o que para ele é afinal a mesma coisa.
Um homem escreve
Escreve e escreve e é sempre o mesmo homem que escreve, é sempre o mesmo homem que se escreve.


Graças a Deus

No seu primeiro passeio de mota pela cidade, ainda tenso, ainda hesitante, passou em
frente à igreja de S. Pedro e, num gesto automático, benzeu-se com a mão direita, como
sempre fazia, baixando ligeiramente a cabeça, e perdeu completamente o controlo, indo
enfaixar-se num jipe que ali se encontrava estacionado. Teve morte instantânea, tão
instantânea, espero, como a sua entrada no Céu.


Lições de vida

Tenho uma cama grande mas durmo sempre no mesmo lado, à beirinha, e quando tento extrair desse facto uma lição de vida, nunca sei se hei-de afirmar que quem dorme à beira de uma cama grande não sabe aproveitar a vida ou, se pelo contrário, quem dorme à beira de uma cama grande sabe que na vida o pouco é, a maior parte da vezes, mais do que suficiente.


Pequena história do homem que não tinha história alguma

Até aos trinta anos viveu na casa onde nascera, muito depois de todos se terem ido embora. Um dia, nunca soube bem porquê, foi para além da cancela que se abria no muro que delimitava a propriedade e continuou em frente, sem nunca olhar para trás. Desde então nunca mais parou em lugar algum o tempo suficiente para que se lembrassem dele, e os que antes o tinham conhecido já há muito o haviam esquecido ou estavam mortos. Por isso escrevi esta pequena história, para que ele tenha uma história que possa ser contada muito para além da sua morte.


O pior e o melhor


Dizes-me que o pior cego é aquele que não quer ver; respondo-te que aquele que não quer ver é, muito pelo contrário, o melhor cego.
Olhas-me com espanto e eu prossigo: “O pior cego é, sem sombra de dúvida, aquele que quer ver, aquele que não aceita a sua condição de cego.”
Continuas a olhar-me sem nada dizer e eu concluo como começara:
- Somos muito diferentes, tu e eu, só tu não o vês.


Dúvida

Os corpos dos amantes procuram em vão. Nunca, por mais que tentem, serão como o rio e as suas margens. Estamos sós, tão sós, e o amor é sempre um regresso ao ponto de partida. Só podemos encontrar o que já existe há muito dentro de nós.


Escrever

Um homem sem coração tentou escrever um romance a partir de uma história que um homem sem cabeça lhe contara sobre o encontro entre um homem sem pernas e um homem sem braços, mas não conseguiu passar da primeira página.
É muito difícil começar a escrever e ir por aí adiante.


LIVRO II – AFASIA
sem título

não perturbes (de ânimo leve) o silêncio (do branco) da folha


Lúcido

caminhos
estreitos

muros
altos

olhos
no chão

a vida

passa-nos
ao lado


Uma única palavra

Sento-me e escrevo
uma única
palavra

escrevo e espero
que o tecto e as paredes
se tornem céu

escrevo e espero
que o chão do quarto
se torne mar

espero e espero
e quase quase
desespero


A minha vida


avanço
pouco a pouco
até à beira
do abi
s
m
o

recuo
pouco a pouco
para longe
do a-b-i-s-m-o

e de novo avanço

e de novo recuo

é assim a minha vida
um avanço feito de recuos
um recuo feito de avanços


Finalmente

Afina
afina a
mente e
pergunta
será que a
mente nunca
mente ou
a mente
a final
mente
finalmente


Iluminada


se acreditas que
a alma se distingue
do corpo e que
o lume pode
ser nada
então não
duvidarás de
mim quando
te disser que
para que a alma
se incendeie
basta uma única
palavra

iluminada


Caminhante


Faz-te ao caminho
caminhante
caminha sempre
adiante
faz da estrada
a tua
amante
nunca pares
caminhante


dizes


dizes que
sempre acontece
o que tem
de acontecer
dizes que
são as malhas
que o acaso tece
quando acontece
acontecer

é o que
dizes


Separação


se-pa-ra-ção
se pára a acção
se-pa-ra-ção
se pára cor e acção
se-pa-ra-ção
se pára coração
se-pa-ra-ção
separa coração
se-pa-ra-ção


sem ti



Sem ti / senti / metal

Sem ti / senti-me / o tal

Sem ti / senti-me / mal

Sem ti / assento / mal

Sem ti / 100 de / emental


Arrumador


Arrumador:
arrumador arruma:
arruma a dor.

Arrumador:
arrumador arreia:
arreia a dor arrumador.

Arrumador:
arrumador dá rumo: dá rumo à dor:
à dor de arrumador.

A rua é uma dor arrumador:
arruma a dor que és da rua
amador: arrumador.

Fábula

Olhou, achou-a bela, desejou-a e logo disse a si mesmo que toda a beleza é aparente. Bem sabia ele que toda a beleza é verdade.

O paraíso

Tu consegues ver, eu sei que consegues.
E achas que alguma vez chegarei lá?
Nesses momentos tu já estás lá!

Verso


Eu não escrevo, escrevo-me. E o que escrevo, escreve-me.


Reverso


E de repente, depois de muitos e muitos anos de um longo e tortuoso caminho, chegou lá. Nada acontece de repente.


LIVRO III – INCONTINÊNCIA
Dois poetas
Um poeta escrevia todos os dias enquanto outro passava meses sem escrever. Os poemas de um eram muito, os poemas do outro eram muito melhores.

As pessoas
Era um artista enorme, extraordinário, e era um homem pequeno, mesquinho, execrável. As pessoas admiravam-se. As pessoas não compreendiam. As pessoas têm esta incompreensível crença que lhes diz que é preciso compreender.

Interesse nacional
O país precisava de braços. Precisava muito. Ele só tinha um braço, o direito, mas nem por isso o país se esqueceu dele: cortaram-lhe o braço que lhe restava.

Pequena história reciclada
Mentia e mentia e mentia. A torto e a direito. Com convicção. E ria, ria muito. Dizia que era quando falava verdade que ninguém o acreditava.

o incendiário
admirava-se sempre com a facilidade com que a gasolina entrava em COMBUSTÃO.

o oportunista
fugiu sempre ao confronto e à verdade. Chegou a ministro.

O Casamento perfeito
Ele pensava que que mandava, ela mandava de facto. Ou vice-versa.

Literatura
Em literatura nenhuma frase está sozinha, nem mesmo quando é a única.

O Hábito
Em criança sonhava ser enforcado, enfrentar perigos, mas depois levou sempre uma vida pacata, sem sobressaltos, chá para quatro. Um dia leu num papel asfixiado num beco que era preciso vencer a Natércia, mas era demasiado tarde para ele, há muito que estava habitado e já nada o surpreendia. E tu, leitor?

A Verdade
A última história a ser contada é sempre verdadeira, mas nunca é a última.

Tudo e Nada
Tinha tudo menos paz de espírito. Antes nada tivesse.

a dor
Doía-lhe sempre, mas às vezes doía-lhe menos.

Sabedoria
Pouco ou nada sabia, mas tinha uns vislumbres, intensos e profundos, que lhe davam a certeza de que pouco ou nada sabia.

Verdade Avassaladora
O sexo está sobrevalorizado, disse ela, e nesse momento teve um orgasmo avassalador.

O Homem Ridículo
Como os homens são ridículos, disse o Homem Ridículo, e riu, riu muito.
Acham que ele sabia?

O Homem Vazio
Falou durante horas. Quando se calou, percebeu finalmente que nada tinha para dizer.

O Homem Repetitivo
O meu problema é que me repito muito, disse ele ainda mais uma vez.

O Homem Preocupado
Andava sempre muito preocupado. Um dia deixou de se preocupar e ficou ainda mais preocupado.
O Marido Fiel
Fui sempre fiel, disse ele, enganei-a sempre.

O Tolo
A única diferença entre os homens, disse ele, é que uns estão vivos e outros mortos.

O Escritor de Sucesso
A escrita é a minha bóia de salvação, disse o escritor, e atirou-se ao mar, ao vivo e em directo, com um livro na mão.
Será preciso dizer que o escritor se salvou mas a sua obra não?

O Suicida
Sentiu-se tão vivo, tão extraordinariamente desperto, que quase desistiu.

O Voyeur
Nunca se aproximava das pessoas nem deixava que se aproximam-se dele e, no entanto, amava-as, de longe.

Verdade e consequência
Nenhum dos três conseguiu: o primeiro queixou-se das condições, o segundo lamentou-se da sua má sorte e o terceiro pediu para tentar de novo.


O Traste
I
Apaixonou-se por ele porque era um traste; separou-se dele porque era um traste.
II
Apaixonou-se por ela porque era um traste; separou-se dela porque era um traste.

O Misantropo
Detestavam-no, é verdade, mas muito menos do que ele os detestava.


Moto continuo

Doía-lhe sempre, todavia nalguns momentos doía-lhe menos.
Amava sempre, todavia nalguns momentos amava menos.
Amava muito, todavia nalguns momentos amava menos.
Amava muito, mas nalguns momentos amava menos.
Amava muito, mas às vezes amava menos.
Amava muito, mas às vezes amava demais.
Doía-lhe muito, mas às vezes doía-lhe demais.


OS POETAS SÃO PUTAS


1.


Os poetas são putas
as mais desgraçadas das putas:
vendem-se sempre
mesmo quando apenas vendem
o que escrevem;
quando não lhes pagam
dão-se de borla;
tratam cada cliente
como um filho querido;
querem ser amados por todos
e negam
negam a pés juntos a sua condição
de putas
mas nunca
nunca deixam de ser putas
quanto mais velhos
mais putas




2.

os poetas são putas
as mais ingratas das putas:
seduzem-nos e abandonam-nos
sem promessas
no final de cada poema.

3.

Os poetas são putas
as mais afortunadas das putas:
deitam-se com as palavras e abrem
as pernas à poesia.

PS.

[Perguntei mais tarde a um amigo se achava que os poetas eram putas. Respondeu-me que alguns são filhos delas.]

Cruzeiro Seixas

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